sexta-feira, 31 de agosto de 2018

JARDIM DE INFÂNCIA

Quando Cléber Nascimento chegou ao local de trabalho sentiu verdadeiro asco. Uma fila gigantesca de maltrapilhos e famintos homens tomava conta de pelo menos quatro quarteirões. E isso que os atendimentos começariam apenas à tarde. Se não estivesse protegido dentro de seu carro cuspiria no chão, pois nada irritava-lhe mais que fracassados pedintes de empregos braçais. No íntimo sonhava com o dia que gerenciaria apenas operários-robôs, desprovidos daquela linguagem horrível dos pobres, sem aquele fedor de sabonete barato.

Mas sabia que este futuro talvez estivesse um pouco longe do Brasil. Tinha muito a ser feito, e pelo menos agora eram governados por alguém que entendia dos problemas das famílias que realmente importavam para a nação. "As próximas gerações terá só a nata..." elaborava os pensamentos enquanto subia da garagem do edifício até sua sala. Estava preparando-se para o dia horrível de trabalho que teria pela frente... Aguentaria bafo de cachaça, lamentos de desdentados, mas ao menos aquilo ser-lhe-ia provisório, já que depois de contratada a jagunçada poderia manter distância saudável.

Entretanto, não sabia que poucos segundos depois de pensar tais coisas, aboletar-se atrás de seu computador, na quarta e insistente ligação da escola do pequeno Guto, perderia aquele dia todo de trabalho.

Augusto Nascimento estava com seus quatro anos e pouquinhos. Uma joinha rara do jardim de infância segundo as professoras. Autêntico, sagaz e com identidade bem estabelecida. Quando "as tias" diziam-lhe isso, Cléber sentia certo orgulho pela vagabunda da mãe do garoto ter-lhe contrariado e não abortar o muleque. "Vai dar dos bons, macho qual o pai" gloriava-se Cléber entre amigos. Mas nem por isso a escola tinha autorização para ligar-lhe, estavam avisadas que tratassem tudo com a mãe, afinal, era o único lugar que permitia que a puta fosse sozinha.

Contudo, a insistência incomodou-o e ele teria de dize umas verdades a quem quer que fosse que o estivesse atrapalhando no trabalho.

Não teve tempo, porém, de gastar suas palavras de insultos. A diretora começou lamentando-se pelo ocorrido e nos dez minutos seguintes da ligação relatou-lhe o que pode da situação, claro com todo o embaraço provocado por problema.

Gutinho morrera, contara a professora. A direção não havia diagnosticado o surgimento do conflito entre dois grupos na turma. Segundo ela a discussão começara quando um dos garotos que defendia a purificação pelo extermínio massivo dos pouco-importam não gostara do argumento humanista de Gutinho de que se os matassem pela lentidão da fome, mas que de alguma forma eles pagariam ao Estado suas existências lastimáveis. A diretora falou-lhe que fora o outro a sacar um revólver pequeno, acertando dois tiros no Gutinho. "Mas pai, você tinha que ver o seu garoto, que fibra, dois buracos no peito e ainda reuniu forças para empunhar a pistola e matar seu algoz. Um herói o seu garoto" disse ela buscando minimizar a perda.

No tiroteio que sucedeu-se a discussão morreram ainda outros três meninos e uma garotinha que berrava sem parar. Essa fora a própria professora que despachara, já que a menina claramente não estava apta para viver em sociedade.

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

ENTREVISTA DE EMPREGO

É madrugada ainda quando Valdir da Silva levanta-se sonolento. A boca esta empesteada daquele gosto amargo de despertar, e a barriga ronca como um pequeno urso faminto. Há três dias que come num pote de margarina de duzentos e cinquenta gramas, para que sobrasse mais arroz e feijão para os filhos. As passadas displicentes, a arrastar as chinelas, são frutos do cansaço do dia anterior. Peregrinara por toda a cidade em busca de emprego. Não tinha dado sorte.

Mas naquela manhã, contudo, seu olhar fosco, bem lá no fundo exibia uma nesga de esperança. Lera o anúncio de emprego numa dessas páginas de emprego no Facebook. "Precisa-se de Pedreiros" dizia o banner decorado com tijolos e colher. "Diz aqui que a firma vai dar boia pro empregado e duas sextas básicas por mês" disse para Valdirene, a esposa. Perto das ofertas que vinha encontrando, aquela pareceu-lhe tentadora. "Duas mil vagas, mulé, tá dizendo aqui. E olha só, fala ainda que pagam uns trezentos pila, pra gente escolhê se guarda para aposentadoria ou se gasta como quiser".

A conversa fora a noite passada, depois que ele chegara de mais um dia infrutífero na procura de emprego. A patroa, quase dormindo respondeu-lhe com um muxoxo aham, e voltou a dormir. Tinha faxina pesada no dia seguinte. Precisava garantir duas latas de azeite, e quiçá se a Dona fosse boa lhe pagasse também um quilo de arroz ou feijão.

Não querendo iludir-se por antecipação, Valdir banhou-se, jogou meia colher de nescafé num copo com água quente e estaria quase pronto para acordar de vez e partir na missão do dia. Era quatro da manhã, e ele imagina conseguir chegar no local da entrevista lá pelas dez. Diziam que às três da tarde iam chamar as fichas.

Para aquele dia importante, seu "dia D" tivera o cuidado de escolher a roupa menos esfarrapada. Pegara uma camisa azul que gostava e que tinha só três carcomidas de traças. A calça pegara a cujo furo entre as pernas não estava visível. Só não tinha como engambelar mesmo era o sapato. Não adiantava lustrar, o furo não despareceria. Além disso, a caminha pela rua do barraco não deixava caminhar mais que cinquenta metros sem marcá-lo de poeira. A meia pegou aquela rasgada no calcanhar porque combinava com o buraco na sola.

Antes de sair gritou Valdirene que era a hora dela e juntou seus últimos trocados. Sabia que a passagem era só de ida, e se não conseguisse o emprego, teria de voltar para casa a pé. Se conseguisse, daria um jeito de ficar pelo centro e quando o mês terminasse, levava a cesta básica para a família.

Nos primeiros dois ônibus conseguira até tirar um cochilo. Sabia que uma aparência saudável poderia fazer a diferença na conquista da vaga. Ouvira falar que o Tonho Marreta perdera um trabalho por faltar-lhe três dentes na boca. Quando desceu do terceiro ônibus, caminhara a parte que lhe faltava para chegar até a consolação.

Foi então que o dilema surgiu-lhe. Para chegar até seu destino tinha de cruzar por aquela rua de casas elegantes. Pelo jeito as promessas do presidente estavam funcionando. Aquela rua era um exemplo da nova economia. Carros potentes, pequenas grandes mansões no coração da metrópole. Ali parecia a personificação daquelas propagandas de paz e prosperidade. Mas por alguma razão, Valdir da Silva sentia-se intranquilo naquela passagem.

Mas ele não era homem de temores. Era macho, valente, e não seria aquele recanto de paz e segurança, melhor exemplo da nova nação que o tiraria o sossego. Começou sua caminhada. Um bólido humano querendo cumprir aquela etapa com rapidez. Seus passos eram largos, quase tão famintos quanto a fome que sentia. Mas agora lhe faltava pouco, e algo lhe dizia que tudo daria certo dali em diante. Emprego novo, vida nova...

Então, bem no momento que Valdir caminhara por mais da metade de seu caminho naquele logradouro, duas almas encontraram-se. Cleber Nascimento Alvarenga Peixoto tinha seus quase trinta anos, e estava quase atrasado para o trabalho que o pai lhe conseguira por indicação de um amigo. Trabalhava agora num érre agá de uma empreiteira. A mesma que anunciara o emprego com qual "sonhava" Valdir. O pedreiro vinha a uns trinta metros da garagem da casa de Cleber. Quando o executivo percebeu o vagabundo aproximando com certa pressa, olhou-o e não teve dúvidas. Aquelas roupas de chinelagem, o andar furtivo de quem deve. Não titubeou, com agilidade empunhou a Glock à porta do carro, e desceu do veículo num só movimento. Disparou sete tiros contra Valdir. Três pegaram na cabeça e o corpo do defunto tombou na hora.

Ciente da cidadania, Cléber voltou ao veículo, e ainda manobrando o carro ligou para o número disponibilizado pelo governo informando mais uma contribuição sua para com a segurança pública. "Pois não, senhor" disse-lhe a voz da inteligência artificial do outro lado da linha "estaremos enviando a equipe de faxina nas coordenadas indicadas em até trinta minutos, senhor. E seus Créditos Por Ação Patriótica Cidadã estarão sendo depositados em sua conta corrente nas próximas vinte quatro horas..." Cléber despachou o atendimento dizendo que não desejava informar mais nada. A vozinha então finalizou o atendimento "pois não, senhor, o Governo Brasileiro agradece a sua colaboração para a ordem e o progresso desta nossa nação de bem".

PRÓLOGO

Depois de três décadas de constituição cidadã, liberdades sociais, políticas, e certa estabilidade social, a República treme em meio a escândalos, corrupção, e a total ruptura da civilidade... 

No centro das tensões do poder, mídia, judiciário e outros segmentos das elites e dos poderes oligárquicos da nação semeam a desesperança, o ódio e a indignação, centralizando nas forças progressistas da nação o inimigo a ser combatido em nome de falsas promessas... 

No caldeirão efervescente provocado por esta disputa do poder, o Brasil tem agora um novo presidente, alimentado pelo haterismo digital e que conquistara a população apresentando soluções "fáceis" e que só ele teria condições de implementar... 

Levado pela rampa do Planalto nos ombros de homens fortes e viris, recebido aos gritos de Mito! Mito! Presidente, é sobre as histórias do tempo deste homem que tratam estas histórias... 

 De Quando Bolsonaro For Presidente